Maria Stella de Azevedo Santos
Este é o último artigo que comenta sobre
o “corpo religioso” do candomblé, da maneira como ele é professado no
terreiro/templo Ilê Axé Opô Afonjá, onde fui iniciada e me tornei
iyalorixá. Já foram feitas observações sobre cosmogonia – origem do
mundo segundo o povo yorubá; liturgia – cerimônias abertas ao público;
dogmas – verdades reveladas pelos orixás, que são aceitas usando-se o
critério da fé.
Hoje o tema é ritual: cerimônias que se baseiam em mitos
que foram sendo transmitidos pelos ancestrais. Nos rituais revivemos
passagens importantes dos orixás aqui na Terra e, assim, conectamo-nos
com o comportamento deles. Os rituais, através dos mitos, ensinam para
nós os comportamentos que devem ser seguidos e os que devem ser
evitados. Muitos desses rituais são repetidos em épocas específicas,
pois têm que estar em conexão com os ciclos da natureza. É de
fundamental importância que os sacerdotes busquem e adquiram esse
conhecimento, pois só assim os rituais alcançam todo seu potencial.
A grande polêmica que fazem com a
religião dos orixás é o fato de em alguns de seus rituais animais serem
sacrificados. Uma prática que existe desde quando o homem precisa
alimentar-se. Sempre foram realizados por muitas religiões, mas que aos
poucos foram deixando de existir em algumas. A pergunta é, então, por
que o candomblé ainda faz o que, para muitos, é considerado uma
barbaridade?
A resposta é simples: essa religião tem
uma profunda relação com o planeta Terra, tanto que suas danças são
feitas com os pés totalmente plantados no chão, diferente do balé, que
parece demonstrar que os bailarinos, dançando nas pontas dos pés,
desejam alcançar o céu. Essa ligação com a terra não poderia excluir a
necessidade que o homem tem de se alimentar para sobreviver. Oferecemos
aos deuses tudo aquilo que nos mantém vivos e alegres: alimentos,
flores, perfumes, água limpa e fresca.
Tranquilizo os leitores dizendo
que no dia em que os homens deixarem de ter na mesa galinha, galo,
carneiro, porco, boi… naturalmente esses animais deixarão de ser
ofertados aos deuses. Se um dia o sacrifício humano existiu foi porque
as tribos se alimentavam de seus semelhantes. Se a desculpa para crítica
de sacrifício de animais se deve ao fato de eles serem seres vivos,
gostaria de lembrar que laranja, alface, couve também são seres vivos.
Afinal, quando arrancamos uma raiz de
inhame para que ela faça parte da nossa farta mesa de café da manhã, nem
lembramos que sacrificamos um ser vivo. Neste caso é para nos servir de
alimento, e quando arrancamos uma flor pelo simples prazer de curtir
sua beleza? Gostaria, apenas, que as pessoas que criticam os nossos
rituais refletissem sobre o que foi dito anteriormente, com o coração e a
mente aber ta, e chegassem às suas próprias conclusões. Não é nosso
interesse forçar alguém a crer em nossas verdades, mas é nossa obrigação
fornecer subsídios para ajudar as pessoas a ampliarem o conhecimento de
suas mentes, a fim de que seus corações possam ficar cada vez mais
livres de preconceitos, o que faz com que eles se tornem mais
purificados.
Caso tudo o que falei ainda não tenha
servido para que o sacrifício de animais no candomblé possa ser
compreendido, quero lembrar que os animais de que o povo se alimenta no
seu dia a dia são mortos em série, de maneira cruel, nos abatedouros. Os
nossos animais são reverenciados desde que são escolhidos nas feiras
livres, até o momento em que são oferecidos aos orixás, quando cobrimos
seus olhos com folhas específicas de calma e cantamos a fim de diminuir o
estresse que eles possam estar sentindo.
Além disso, eles não são
animais quaisquer, são escolhidos aqueles que o sacerdote consagrado
para esta função percebe que já estão no momento de passar para outro
estágio evolutivo. Não matamos o animal, damos a ele um novo nascimento,
por isso cantamos: Bi ewe yeje para lala ie, Ògún pere pa = Demos-lhes
um novo nascimento, você resistiu à prova, ultrapassou seguramente
privações e sofrimentos, você não está morto, está vivo. Somente Ogun
mata.
Maria Stella de Azevedo Santos é
Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Quinzenalmente ela escreve para o
jornal A TARDE, sempre às quartas-feiras
Fonte: Jornal A TARDE 29/08/2012
Fonte: Jornal A TARDE 29/08/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário